“Entre a vida e a morte, há uma biblioteca – disse ela. – E, dentro dessa biblioteca, as prateleiras não têm fim. Cada livro oferece uma oportunidade de experimentar outra vida que você poderia ter vivido. De ver como as coisas seriam se tivesse feito outras escolhas… Você teria feito algo diferente, se houvesse a chance de desfazer tudo do que se arrepende?”
{Matt Haig, em ‘A biblioteca da meia-noite'}
Eu já superei esse movimento.
Eu já me desfiz do arrependimento.
Eu já não me distraio com as perguntas do “E se…”.
As coisas são como foram.
Eu paguei caro para chegar até aqui e não, não quero meu dinheiro de volta.
Não se isso significar abrir mão do que aprendi.
Cada erro, cada sofrimento, cada dor me ensinou demais.
Então, eu não quero mudar o passado. Nada disso.
Mas, por Deus, como eu queria organizar o presente…
É assim: eu queria que a minha vida fosse como uma biblioteca.
Eu queria poder pegar meus livros todos, tirá-los da estante, limpar as prateleiras, remover o pó e as teias de aranha. Queria pegar obra por obra, momento por momento, abrir e rever as marcas que deixei, (re)lembrar o que aprendi e como aprendi, só para depois ordenar tudo outra vez.
Eu queria poder escolher que forma dar às coisas.
Queria poder adotar um critério qualquer para tirar o caos e a bagunça de dentro.
Título? Autor? Gênero? Avaliação?
Cor, por que não?!
Eu queria que tudo fosse simples assim.
Flanela na mão, álcool gel e uma música animada para ajudar.
Eu queria faxinar a vida. Me organizar com tempo e espaço, escolher o que fica e o que vai embora. Separar o que é lixo e o que é tesouro. Ver o que combina melhor com a iluminação.
Eu queria um tempo para mim. Só para mim.
Um tempo fora do cotidiano, das tarefas, das demandas todas.
Talvez até música clássica eu ouviria então…
Só que em vez uma biblioteca bonita, minha vida é um bar de rodoviária.
É um entra e sai sem fim: de tarefas, de imposições, de aulas, de trabalhos, de doenças e de urgências. Um pastel, duas cervejas, o banheiro está entupido e uma criança vomitou no chão. Ah, e aqueles bêbados de sempre estão brigando no saguão. Alguém chame a gerência, pelo amor de Deus! Mas espere: a gerência sou eu.
Um quer nota com CPF, outro veio reclamar que não tem carne no pastel de queijo, alguém quebrou um copo e aquela senhora ali no canto está passando mal. Mas antes de chamar o SAMU, que tal erguer o volume da TV?! Hoje tem jogo do Grêmio!
Não há tempo.
Não há espaço.
Há só o cansaço.
Há um balcão de reclamações sempre lotado e a fritadeira acabou de pegar fogo. Nem por isso as portas podem fechar. Nem por isso as pessoas param de entrar e de exigir três almoços e duas águas para viagem, por favor!
Eu estou no meu limite.
E onde está a Vigilância Sanitária que não interdita logo este lugar?!
Eu queria fazer da minha vida uma biblioteca, entendem?! Um espaço de pura contemplação. Queria para mim luzes delicadas e leitura de poemas. Queria artes nas paredes e frases bonitas de decoração. Queria conversas profundas e, quem sabe, até um cheiro de café passado. Queria um refúgio, um lar bom de se viver, com gatos dormindo nos vãos.
Mas consegui só esse pé-sujo, com ares de botequim. Consegui essas cadeiras quebradas, uns copos rachados e varejeiras presas no balcão dos sonhos. Consegui um lápis de se colocar atrás da orelha, um palito de dente para a boca, cardápios engordurados sobre as mesas e clientes sem educação. Consegui um banheiro com vazamento, uma coifa pingando gordura na comida e um cheiro persistente de mofo.
Acho que eu quis demais, no fim.
Quis colocar na minha vida algo de sublime que não coube.
Esqueci quem sou, me perdi no caminho. Encontrei a Literatura, o que é muito azar para um filho de caminhoneiro, que deveria era se sentir em casa no bar de rodoviária mesmo. Que deveria usar a camisa fechando sempre só três botões, que deveria beber cerveja e arrotar com gosto.
Em vez de virar clichê, eu virei blasé.
E isso não combina com a decoração.
Eu queria minha história impressa e encadernada. Mas só a encontro nos guardanapos sujos e amassados no chão. Eu queria silêncio e contemplação, mas o que tenho é sempre o barulho de um ônibus chegando ou partindo sem me levar daqui.
A vida parece, no fim, um destino para o qual eu não pude comprar a passagem. E por mais que eu trabalhe e teime e me esforce e sue, eu fico sempre aqui, neste bar, vendo todo mundo embarcar para a Felicidade.
Neste bar de rodoviária, sou o espectador de milhares de vidas que se entrelaçam e se separam, um emaranhado de possibilidades que nunca se desdobram para mim. Aqui, o sofrimento é um velho conhecido, um companheiro constante que se senta ao meu lado e me observa contar moedas - ainda não dá pro bilhete.
Hoje, eu não quero acreditar em milagres, não quero a esperança vazia que promete mudanças que nunca chegam. Porque é no sofrimento que me encontro, é nele que me reconheço, é nele que, de alguma forma, me sinto vivo. É ele, no fim, meu cartão de biblioteca. Dessa biblioteca que só em sonho me vem, sempre em vão.
Sempre para me lembrar dessa vida de nãos.
Dessa vida, passada e amassada atrás de um balcão.
E para a senhora, para o senhor, o que vai ser hoje, chefia?!
🖼️ Eu reconheci cada obra. E não deveria. É sobre isso.
📜 Vale a pena ouvir a história por trás dessa que é uma das minhas músicas favoritas.
📦 Existe beleza na simplicidade.
🗝️ Um mini museu de mementos.
🫠 Estou todo assim.
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Bombou no Insta esta semana:
"As coisas são como foram" - eis uma frase que eu precisava ouvir.
Nós queremos seguir adiante fechando o livro, abandonando algumas histórias, virando algumas páginas (para sempre), mas está tudo registrado, cabendo-nos lidar com o que somos! :)
Grato!
Eu também queria faxinar a vida.