“Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então porque estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar de paraquedas coloridos.”
{Ailton Krenak, em ‘Ideias para adiar o fim do mundo’}
L’appel du Vide.
Ou, em bom português: o apelo do vazio.
É assim que os franceses chamam aquela sensação que alguns de nós têm diante de lugares altos demais. E não, não é medo de cair.
É vontade de se jogar mesmo!
L’appel du vide - se eu fosse obrigado a traduzir essa expressão, sem saber do que se tratava, talvez caísse no falso cognato e preferisse dizê-la como: “O apelo da vida”.
E isso diz muito sobre mim.
Isso explica porque já fui chamado de abismo seguro.
Isso explica porque já ouvi de alguém que amei: “Eu amo você também, mas você me dá vertigens. Você desperta em mim meu lado mais intenso e autodestrutivo e não sei lidar com isso agora. Não sei se um dia eu saberei”.
Olhando assim, de fora, não dá para dizer. Pareço bom moço. A bem da verdade, eu poderia até pegar emprestada a descrição de Drummond:
“O homem atrás do bigode
É sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode”{Carlos Drummond de Andrade, em ‘Poema de sete faces’}
Mas só ele sabe das quedas que tem.
Só ele sabe do próprio vazio e da vontade de se perder nele.
Sobre o appel du vide, alguns psicanalistas explicam que a vertigem sentida não é uma vontade real de se machucar, não é um impulso suicida, nem nada disso. É antes uma reação ao reconhecimento do perigo que é nossa liberdade de escolha. Então eu poderia me jogar, de verdade, se eu quisesse? Sim! E eu escolho não fazê-lo? Sim também. Mas por quê, hein?!
L’appel du vide é, em última instância, o nosso assombro por não nos deixarmos cair.
A primeira vez que o senti, lembro bem, eu estava na Igreja. Sentáramos no mezanino, alguns colegas de catequese e eu. Enquanto o padre falava em pecados e perdições, eu me fazia de desentendido, olhando para os ladrilhos lá embaixo.
Por dentro, no entanto, crescia em mim o pensamento intruso de me jogar de vez. Tanto no chão, quanto no inferno com o qual o sacerdote nos ameaçava. Eu já me julgava condenado mesmo. Pelo quê, não posso dizer.
Lembro de como minha visão se embaralhava, de como os ladrilhos pareciam me invocar e seduzir. Lembro das suas formas saindo e entrando de foco, enquanto eu pensava que seria fácil passar uma perna pelo balcão, depois a outra…
E fim.
Não me joguei naquele dia.
Nem depois.
(Sou um abismo seguro, lembra!?)
Mas me tornei cada vez mais familiarizado ao appel du vide, a ponto de precisar dele para me sentir vivo. Eu vou confessar: eu gosto da sensação da queda. E ela não vem só de lugares altos. Ela vem de tudo aquilo que poderia nos destruir. Ela vem daquele passo irremediável, que poderia acabar com tudo, mas que evitamos dar no último segundo.
Ela vem das mensagens que escrevemos, mas não enviamos.
Das fotos impublicáveis que tiramos, mas não divulgamos.
Das coisas que pensamos, mas não dizemos.
Do carinho que erguemos a mão para fazer, mas abaixamos de novo no segundo final.
Ela vem dos beijos que imaginamos e negamos ligeiro, porque sabemos que eles seriam uma mordida num fruto há muito proibido.
Por isso, eu entendo aqueles personagens que se perdem. Eu sou assim também. Sempre a um átimo do precipício. Sempre a uma cena da perdição.
Eu não tenho medo da queda. Eu tenho é vontade.
Eu tenho é desejo de me descascar inteiro, de me atirar em todos os abismos e de descobrir quão perto do sol eu posso chegar antes que as minhas asas derretam. Você também?!
Eu sei que sim.
Assim, permanecemos equilibristas na corda bamba da existência, dançando entre o céu e o abismo. No fim, o appel du vide é esse sussurro do universo em nossos ouvidos, um convite para reconhecermos a beleza do voo, mesmo quando o pouso é incerto.
A cada momento de hesitação, a cada suspiro contido, estamos escolhendo. Escolhemos a vida, escolhemos o amor, escolhemos a esperança. E, ao escolher, afirmamos nossa humanidade, nossa capacidade de transcender o vazio com a força de nossa vontade.
Por que o que é a vida senão uma série de quedas e recomeços?
Aprendemos a voar não porque tememos a queda, mas porque amamos a ascensão. Amamos a vista do alto, amamos o desafio, amamos a possibilidade de sermos mais do que somos. Nos sentimos vivos assim.
Então, quando o appel du vide nos chama, que possamos responder com um sorriso corajoso. Que possamos construir nossos paraquedas coloridos não apenas para suavizar a queda, mas para colorir o céu com os matizes de nossas almas. Para experimentar um voo possível.
E se, por acaso, um dia decidirmos nos lançar no vazio, que seja com a certeza de que, em nossa queda, encontraremos as asas que sempre estiveram escondidas. Asas forjadas na coragem de viver, de amar, e de ser infinita e intensamente nós mesmos.
🥝 Esse vídeo sempre me faz chorar.
🖼️ Gostei DEMAIS dessa galeria aqui.
👴🏻 Há arte em toda parte.
𖤐 E as composições desse cara, você já ouviu?! Valem o play!
🔩 Nem tudo que voa é pássaro.
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Bombou no Insta esta semana:
Que texto maravilhoso, Vinícius!
Essa sensação me dá ansiedade, não curto. Mas reconheço bem essa imagem de correr o risco de se atirar no abismo que você colocou no texto. Por vezes a gente sucumbe a ela e o arrependimento vem com força. Ou não, de alguma forma encontramos o paraquedas colorido e a queda no abismo ocorre de forma suave e bela.
Sensacional